18 julho 2010

Somos muitos severinos?

Então uma menina resolveu usar o blog para manifestar a revolta que ela sente ao ver o centro de sua cidade – São Paulo – sendo entregue a nordestinos que por não terem nascidos por lá não irão cuidar tão bem do lugar quanto ela, paulistana, cuida. Quando eu recebi o texto, que foi parar no twitter, tinha 20 comentários, e meia hora depois estava com mais de 200, e a maioria xingando a menina de fascista, xenófoba e tudo mais. Novidade para você? Nem pra mim.

Eu cresci em uma cidade onde, uma vez por ano, cerca de 300 nordestinos chegam em busca de trabalho. Eles deixam filhos, pais, irmãos, maridos e mulheres, para trabalhar na lavoura de cana-de-açúcar, ganhando o suficiente para comprar comida e pagar o aluguel de um quarto-e-banheiro. Só.

E lá, na minha cidade, acontece exatamente o que a Carla expôs no texto. Do mesmo jeito que ela expôs. O bairro mais feio da cidade é habitado por nordestinos. E é onde acontece grande parte dos problemas envolvendo a polícia.

Eles, os nordestinos, são tratados pelas pessoas da cidade como “cabecinhas”, e nenhum morador nascido no local hesita em falar mal de qualquer um deles, seja trabalhador, pai de família ou um bêbado caído na sarjeta. A culpa é sempre dos “cabecinhas”. Não é raro eles serem também motivo de piada.

Um dia, eu resolvi fazer uma reportagem sobre essas pessoas que rodam milhares de quilômetros em um ônibus sem banheiro e sem qualquer tipo de conforto, chegam sem cobertor, sem casa, sem comida, para pegar num facão às 5 da manhã do dia seguinte.

Entrei em muitas casas, conversei com jovens, velhos, crianças. Alguns haviam chegado há pouco, outros já tinham filhos nascidos na cidade, que já sabiam ler e escrever. Uns pretendiam voltar no final da safra, outros juntavam dinheiro para comprar uma casa por essas bandas.

Mas para qualquer um que perguntasse sobre “o que você acha daqui?”, a resposta era a mesma: “muito melhor do que lá”.

Quem pensava em voltar, era porque não via chances de conseguir se manter por cá depois que acabasse a safra. Alguns, porque deixaram noiva esperando casamento.

Lá, segundo eles, tem pouca escola. Quando tem, é longe. Falta água, falta saneamento básico. São cidades, de verdade, muito longe de qualquer cartão postal. É onde ainda impera o coronelismo, acreditem vocês ou não.

Eu, quando sai com meu gravador em mãos, esperava a visão romântica do João Cabral, do retirante que após alcançar a terra sonhada desilude-se com a selva de pedras e sente falta do sertão.

Dois Córregos não é uma selva de pedras. É uma cidade receptiva, pequena, aconchegante, apesar da hostilidade por parte dos nativos. Acontece. Não dá para comparar com São Paulo, mas os nordestinos de lá e de cá são os mesmos.

E quando eles chegam por esses lados, acabam – alguns – sem emprego. Sem casa, sem família, sem comida, sem escola. Alguns vão dormir na rua. Outros vão encostar na porta de um boteco, encher a cara, arrumar uma briga e dar mais um problema para a polícia. Mas muitos vão trabalhar das 5 as 5 todo dia.

A prefeitura local disponibiliza um centro de assistência social para quem vem de fora. Não sei se é assim em todo lugar. Só que é muita gente, pouco funcionário. Burocracia e tudo mais. Falta assistência, e então quando não se tem nem o que pôr no prato, é difícil pintar a fachada da casa e deixá-la bonitinha para quem vê.

Aí que sim, acontece de os nordestinos não cuidarem da cidade. Mas daí para dizer que a culpa é toda deles, pura inocência. Pensar que quem nasceu no lugar vai cuidar muito melhor do que quem veio de fora é um engano.

Muitas das pessoas com quem conversei – principalmente aquelas que já estavam estabelecidas no local – demonstravam carinho por aquela cidade que não era delas, mas que as acolheu.

Em um dos depoimentos, um senhor que estava lá há 7 anos disse que gostava muito de ir à praça aos finais de semana, para passear com a filha. Quando perguntei se ele sentia preconceito por parte dos moradores locais, ele disse que sim. “As vezes eles xingam, mas é porque não nos conhecem”.

Agora vem o clichê: existe todo um processo histórico por trás daquilo que é exposto no texto da Carla. A questão é cultural, política e social.

Quando eu saio pela cidade e vejo um 'playboyzinho' – provavelmente nascido na cidade -
jogando uma lata de cerveja pela janela do carro, penso: o que é que a gente está fazendo para melhorar?

Porque aí, no dia seguinte, o playboyinho vem e me diz que aqueles cabecinhas são um atraso para a cidade. Acontece.


*E aí que a Carla tirou o post do ar.

5 comentários:

Felipe Matos Ohno @felipeohno disse...

Tem crítica, tem literatura, tem enredo e tem dislexia! Orgulho...

Theo disse...

por isso e vários outros motivos que eu te amo =)

VetAgro disse...

muito bom, muita gente não sabe disso mesmo, mas por que o escolhido é fevereiro isso ainda não sei direito tb;;;; bjo

Patrícia Garbuio disse...

Gostei muito do seu texto.Fala da realidade.Preconceito que existe de tantas maneiras.Colocar a culpa nos outros é sempre mais fácil.
Parabéns!bjsss

Verídico disse...

Concordo com todos os comentarios anteriores e ainda acrescento: E quem disse que a cidade é 'deles'? Os pais da Carla nasceram em SP? Os avós? Os filhos dela nascerão? E os filhos dos 'cabecinhas', nascidos em Dois Córregos, serão Carlas? Serão os playboyzinhos? Serão Carols?