Depois de dias de resistência, acabei de assistir ao filme “Última Parada 174”. Resistência porque eu sabia o que me esperava: a reprodução daquela tumultuada tarde de junho do ano 2000, e eu ando numa fase “comédia ou trash”, pouco interessada em assuntos densos e cenas fortes.
Resistência também porque, meses atrás, eu assisti ao documentário sobre o mesmo tema, com direção de José Padilha, que tem relatos dos passageiros do ônibus e de pessoas que conheciam Sandro Barbosa do Nascimento, o rapaz que seqüestrou o ônibus. O documentário me sensibilizou e fez perceber que Sandro, como diz uma das personagens do filme, era a maior vítima daquela história. Eu temia que o filme retratasse um homem motivado pelo ódio e pela vingança, um Sandro mau e perverso, contrário à imagem deixada pelo depoimento das pessoas que conviveram com ele.
O filme não atendeu as minhas expectativas. Não, pois quando eu esperava algo superficial, onde o bandido é o culpado pela tragédia, Bruno Barreto soube conduzir a história e mostrou Sandro como realmente foi: uma vítima da sociedade. Esse é um grande clichê, mas não há outra expressão para o caso. O garoto viu a mãe ser assassinada, morou na rua e esteve na Candelária no dia da chacina. É injusto cobrar alegria e sensatez de uma pessoa com este passado.
Em “Última Parada 174”, a história é contada a partir da visão de Sandro. Mas o melhor do filme não é o enfoque dado: o mundo mostrado através da visão do bandido - que neste caso, nos leva a questionar se ele é mesmo bandido. Há algo que aparece em todo o filme e que rege as ações não só de Sandro, mas também da multidão que, no final, deseja linchá-lo: a culpa.
Eu, que acompanhei naquela tarde de 12 de junho cada momento do seqüestro, surpreendi-me com a história exibida em “Última Parada 174”.
A culpa do bandido
O filme mostra o quanto a culpa é um sentimento destruidor e contraditório: quem assume a culpa, normalmente não é de fato o culpado. E quem é realmente culpado, tem dificuldades em assumir. Um psicólogo amigo meu uma vez disse que para a maioria das vítimas de abuso sexual, o pior não é aceitar o que aconteceu, mas entender que não se teve culpa alguma naquilo. Por isso, muitas vítimas de abuso pensam antes em suicídio do que em matar o abusador.
Em casos de separação, também surge o sentimento de culpa. Não no pai ou na mãe que resolvem deixar a família, mas nos filhos, que pensam ser o motivo da separação. Não que eu pense que é um pecado destruir uma instituição tão bela como o casamento. Amor acaba, convivência cansa, é fato. Mas o lógico seria que os pais se sentissem culpados e não os filhos.
Sandro sentia-se culpado pela morte da mãe, que foi vítima de um assalto. Ele não teve embasamento psicológico para suportar o peso da sociedade.
Mais do que pelas drogas e pelo ódio, Sandro foi motivado pela culpa e pela insegurança. Ele não seqüestrou o ônibus porque queria dinheiro. Fez porque não entendia mais o que estava fazendo. Porque não sabia para onde correr e não tinha nada a perder.
A perversão da culpa se revela no momento final do filme. Após os disparos contra a professora Geisa, Sandro cai e a multidão avança com a intenção de linchá-lo. Nenhuma das pessoas que assistiam a tudo sabia por que o sequestro começou. Ninguém sabia quem era Sandro, se tinha família, o que fazia, o que falou para os passageiros do ônibus. Mas sabiam de uma coisa: esse tipo de pessoa precisa morrer. A sociedade não está pronta para aceitar as pessoas que lhes jogam na cara suas falhas.
Uma vez eu li em um texto do Ferréz algo como “E a moda é colocar a culpa no traficante. Você acha que ele vende drogas? Ele só distribui. Quem vende drogas é a sociedade que tira todos os sonhos do favelado e ele já nasce para consumir os alteradores de realidade”. As palavras não são essas, mas a idéia é.
Ninguém está pronto para assumir a culpa. Quem assume, acaba tomando atitudes erradas. Quem não consegue assumí-la também.
Um outro Sandro
Vitor Carvalho, que interpreta o Sandro criança, deu ao personagem o olhar de desamparo digno de quem sofreu uma grande perda. E o ar inocente de quem não tem capacidade para entender os motivos da tragédia.
A atuação de Michel Gomes, o Sandro adulto, parece muitas vezes questionável, permitindo que, em certos momentos, Marcello Melo Jr. roube a cena com seu Alê Monstro, o verdadeiro bandido, a caracterização do assaltante marginal.
Quem naquela tarde acompanhou pela TV as cenas do sequestro, tem na lembrança a imagem de um rapaz enfurecido, ensandecido, sem limites. Falta à Michel essa energia. Porém, a sensibilidade do ator rouba a cena no momento em que Sandro desce do ônibus. Todo o desamparo é refletido no rosto que olha para o policial, desvia do tiro e vê a multidão correr em sua direção. É o olhar de quem não sabia ao certo o que estava acontecendo. O olhar do rapaz que, por não saber o que estava fazendo, não soube a hora de parar.
2 comentários:
Muito legal comentar sobre esse filme, assisti ele ontem e, parece ate engraçado, mas também fiz um post sobre ele nesta madrugada. Claro que com um texto mto pior, hehe. Realmente essas pessoas são vítimas da violência aonde foram criadas e fica difícil atribuir culpa, mesmo que ela exista. Acho que só com muita educação num projeto pensado a longo prazo pra resolver essa situação.
E o texto ficou mto bom.
Esse filme é ótimo por ser exatamente o que a Carol disse: joga na cara da sociedade suas falhas. Chorei muito ao fim do filme. De indignação. COmo chegamos nesse ponto?
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