Quando entrei naquela sala de aula, eu ainda não falava. Eu sabia falar, já tinha perdido três dentes de leite.
Fui uma criança precoce: aprendi ler cedo, em casa, antes de decorar a ordem do alfabeto. Eu gostava de desenhar e decifrar letras. Frequentei um tempo o jardim da infância, não se sei I ou II. Fugi e voltei direto para a escola de verdade, sem mesinhas redondas e brinquedos no recreio. Caí numa primeira série.
Eu só falava em casa, coisa de criança tímida criada no meio do mato. Inventava uns amigos, e conversava com eles. Às vezes falava com adultos, mas só quando eles tinham algo pra me oferecer: um doce ou uma história.
E de repente fui parar naquela sala cheia de crianças de verdade que não se pareciam nada com meus amigos imaginários.
Eu ainda não sabia como falar com aquelas crianças todas tão falantes que já sabiam cantar aquela música estranha "ABCDEF..." que a professora regia com uma régua de madeira apontando para a lousa verde.
Então aconteceu: a menina da minha frente virou pra trás. "Me dá um chiclete?". Eu parei de mastigar, quase engasguei, depois quase babei e as palavras por fim saíram: "só tenho esse", colocando um cantinho do chiclete mastigado pra fora da boca. A menina insistiu: "Me dá um pedaço desse!".
Eu não sabia se isso era um ritual comum entre as crianças daquela sala, mas imaginei que fosse. Peguei aquela pontinha de chiclete que ainda estava pra fora da minha boca e puxei. Estiquei até a mão da menina na carteira da frente. E lá ficou aquele cordão cor-de-rosa, pendurado entre meus dentes travados e a mão da menina.
Em segundos, o cordão cor-de-rosa despencou bem em cima do meu caderno. Eu, que ainda estava assustada com a menina que tinha falado comigo, nem percebi que a professora velha, gorda e de óculos horríveis estava parada do meu lado. E ela gritou. Ela falou que não era certo mascar chicletes na aula e nem conversar com os colegas (mas, eu não tinha conversado!). E falou que eu era uma menina mal educada e feia. Ou boba. Ou burra. Eu não sabia mais o que ela havia dito, porque só ouvia gritos e sabia que todo mundo estava olhando pra mim. Eu quis chorar, mas eu ainda não sabia chorar na frente das outras crianças.
A velha gorda voltou para a mesa dela e eu já não ouvia mais nada. Estava com os olhos presos naquela página. O chiclete grudado, por cima do 10+1=11, 10+2=12.
Desde então, eu odeio matemática.
7 comentários:
q linda amor
saudades de vc
Os adultos parecem esquecer, mas as vezes são cruéis com as crianças, do alto de sua "sabedoria" imponente.Quanto à matemática eu tb odeio e por motivos parecidos.Na época em que me impuseram o aprendizado da matemática eu tb tinha medo dos adultos.Abração!
Tem pessoas que por uma atitude marcam a vida da gente seja pro bem ou pro mal, essa professora no caso, te fez odiar metemática o que não é tão dificil assim né.
Imagino a cena: você esticando o chiclete até a mão da outra menina...a professora só poderia ficar possessa msm, coitada! haha..."Eu ainda nao sabia chorar na frente das outras crianças" mto bonito.
Velha imbecil, fiquei com raiva dessa professora siiim!
Eu também odeio matemática e minha mente apagou as memórias, dos traumas que levaram a isso eu acho.
ótimo texto!!!
=**
Hahaha
Uma ótima justificativa. eu ainda não descobri a minha. Talvez tenha que fazer regressão.
Vctem uma graaande capacidade de descrever fatos e prender o leitor. Adorei.
Beijos
Que professora mais malvada. E que prosa mais delicada. Gostei muito de ter chegado por aqui. Ah, matemática, nunca aprendi. minha cabeça não se dava com as contas, só com as palavras.
Grande abraço
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