04 julho 2008

8.3 loiro ensanguentado II

Antes de dar um suspiro de decepção e de desligar o computador, ela ainda olhou para a mesa ao lado mais uma vez e teve tempo de vê-lo ao telefone. E ele sorria!
Foi a gota d’água. Ele desceu, ela seguiu. No fim da escada ela viu na calçada ele abrir a porta do carro. Apertou o passo e avistou a mulher, ao volante. Tão sem graça, ela pensava. Loira aguada! Por que não eu? Tanta gente me olha, por que ele não?
E saiu. Passou pelo bar da esquina e percebeu que, ao seu passar, a conversa dos três homens da mesa da calçada cessara, e só retornaram a falar quando ela já estava mais de sete passos à frente. "Por que não eu?", pensava.
Cruzou com um homem que a olhou nos olhos, depois no decote. E que, com certeza, virou a cabeça dois passos à frente, sabia ela. "E por que ela, não eu?"
Entrou na farmácia e seguiu direto para a prateleira do meio. As unhas vermelhas tamborilavam na caixa de tintura enquanto lia sobre vitaminas e proteção dos fios. Depois, arranhou a caixa. Por último, olhou pra frente como quem precisa tomar coragem, mirou o balcão. Pagou e saiu.
Já em casa, diante do espelho, se media de alto a baixo. Era uma bela mulher, sem dúvidas. "E por que não, então, meu deus?" Tinha um belo sorriso, era compreensiva, gostava de conversar, tinha belos olhos, bela boca, belo corpo. Por que não?
Em frente ao espelho, despiu-se dando início ao ritual. Cada peça tirada merecia um momento de contemplação. Olhava a peça que caía, levantava o olhar, olhava a parte de corpo agora despida.
Nua, enrolou-se numa toalha velha, pegou a sacola sobre a penteadeira e entrou no banheiro.
Molhada, em frente ao espelho da pia do banheiro, abriu a primeira gaveta e tirou de dentro um pente de madeira.
Abriu a segunda gaveta e, depois de vasculhá-la, encontrou a tesoura prateada, já com pontos de ferrugem. Deixou-a sobre o mármore da pia. No espelho, se via embaçada por causa do calor do chuveiro.
Pegou o pente, puxou para a frente da cabeça uma longa mecha de cabelos negros. Penteou-a com cuidado. Acariciou-a com as duas mãos. Pegou a tesoura e viu longos fios caindo na pia. Levantou a cabeça e viu no espelho que seus olhos se enchiam de lágrimas. Puxou outra mecha e repetiu o movimento. O espelho desembaçara e ela via nitidamente as lágrimas escorrerem pela face. Via o nariz vermelho, e as mãos que buscavam mais mechas. A pia coberta de fios negros. Quando cortou a última mecha, soluçava. Limpou o nariz com as costas da mão que segurava a tesoura. Largou-a na pia, sabendo que agora não teria mais volta.
Abriu a caixa de papelão com rapidez, rasgando-a com a unha: tinha pressa e receio de um lado mudar de ideia antes do fim. Melhor fazer logo, sem pensar. Jogou o papelão rasgado no chão, abriu o potinho plástico e sentiu um cheiro que lhe causou náuseas e saudade da mãe. Não era tempo de pensar. Vestiu as luvas plásticas, fazendo cara de nojo. Abriu, desajeitadamente, o papel dobrado em quatro. Buscou com o olhar a informação de que precisava. Misturou os líquidos. Buscou na sacola um pincel de cabo longo. Com as lágrimas secando, começou a última parte do ritual.
De novo em frente ao espelho do quarto, puxava o zíper de um vestido vermelho-sangue. Olhou-se de cima a baixo e não se reconheceu. Passou a mão nos cabelos, querendo acreditar que eram seus. Loiros e seus. Já não sentia mais vontade de chorar, só precisava acreditar que era verdade aquilo tudo.
Pegou uma bolsa preta de dentro do guarda-roupa. Sentou na cama e calçou as sandálias pretas de tiras muito finas. Lançou o último olhar ao espelho, suspirando profundamente. Pensou mais uma vez no comercial de tinturas, onde a modelo dizia que “com esses cabelos você terá o homem que quiser”. Vamos ver. Vamos ver.
Antes de sair de casa, ainda passou pelo banheiro e apanhou de cima da pia a tesoura prateada. Apertou-a contra o peito, com as duas mãos. Vamos ver.
Guardou-a na bolsa e saiu.


[resolvei fazer a versão estendida]

Um comentário:

Theo disse...

"ele me matou primeiro" mto bom!!!!

saudades de vc carolina