É certo que a primeira vez que você viu aquele rostinho bonito nem pensou nesse mundo todo que havia por trás daquele corpo gostoso, daquele narizinho empinado.
Mal imaginou que a menina que dançava e ria pra todo mundo – ah!, uma exibida - poderia, numa tarde de sol, sair nua do chuveiro e pular direto no seu colo, molhada, abraçando com as pernas sua cintura, grudando a boca no seu pescoço entre mordidas e risadas pelo seu espanto, sua cara de bobo. Jamais pensaria, quando a viu sorrir e rir e sorrir novamente e o tempo todo, tão fácil, tão fútil, que ela poderia ser tão doce, tão meiga a ponto de te fazer sorrir também, assim, tão facilmente, só de olhar praqueles olhos que outrora você julgou maquiados demais, perdidos demais.
Você nunca imaginaria que agora passaria horas olhando aqueles mesmos olhos perdidos, ou acariciando seus cabelos enquanto tenta desvendar seus sonhos. De fato ela não fazia seu tipo. Não à primeira vista. Mas, também fato, que logo de cara te incomodou, senão você não teria reparado tanto em como ela segurava o copo ou conversava com os outros, e você não entendia bem o porque desse incômodo. Fez o possível pra ignorar, enquanto ela fazia o possível pra chamar atenção. Não só a sua, de todos, talvez, ela é assim mesmo. Ou era; porque agora ela é outra. Ainda guarda o mesmo sorriso, o mesmo jeito de dançar e de arrumar o cabelo quando sabe que tem alguém olhando. As roupas, talvez um pouco curtas demais, decotadas demais, também são as mesmas. E você pensa em como é possível alguém mudar tanto sem mudar nada. A menina é a mesma, mas agora você sabe que ela ama sol forte e chuva forte e que chora em despedidas, que tem medo de umas coisas bobas e enfrenta outras tantas tão mais perigosas. Que ela gosta de desenho animado e de filmes do Kubrick e ama a voz do Ney Matogrosso, sendo assim capaz de ouví-lo cantar Sangue Latino umas mil vezes seguidas. E então, de repente, você descobriu que adora aqueles olhos, aquela boca e aquelas mãos, ainda mais quando elas seguram bem forte nas suas, quase tentando atravessar seus ossos com as pontas dos dedos. E você mal imaginaria, naquele dia inebriado de cerveja e música, que hoje olharia pra ela com essa cara de bobo cada vez que ela te surpreende, e com essa cara de espanto (com uma pontinha de desespero) cada vez que ela diz, entre lágrimas, que não gosta mais de você. Porque agora você já não vive mais sem aquela voz rouca, aquelas músicas, aqueles livros, aqueles gritos, aqueles gestos, aquele jeito de dirigir o carro cantando e olhando o tempo todo pelo retrovisor. De repente a menina bonita que dançava te surpreendeu quando chorou num fim de tarde, quando cantou ou leu entre risos aquele trecho do Vinícius que diz que “eu sem você sou só desamor”; te surpreendeu por ser assim tão livre, tão capaz de abrir seu mundo pra um estranho chato como você . E você agora não se imagina mais fora desse universo tão diferente do seu, tão distante daquilo que você dizia querer... e tão aquilo que você precisava.