Morava no 73 e chamava-se Ana. Sóbria como o nome, simples como o nome. Corpo e gestos de Ana. Não muito alta, nem muito baixa. Cabelos escuros e cacheados. Vivia sozinha no apartamento de dois quartos. Tinha plantas na varanda e o plano de ter um gato antes de completar trinta anos. Ensinava literatura. Muitos livros na estante. No guarda-roupas, calças jeans e blusas de lã. Pro verão, decotes discretos e flores. No peito, uma delicada corrente de ouro; três amores, uma decepção e uma saudade. Na geladeira, uma garrafa de vinho, lacrada.
Ana sabia que tinha um vizinho que às vezes ouvia jazz e que arrancava de Silvia as risadas mais altas, principalmente nas noites de sexta. Depois do dia em que os olhares se cruzaram no elevador, soube que a Silvia era bela. Antes disso, só sabia que Silvia fumava; e que gostava de fazer isso na sacada, enquanto ouvia uma música leve e sinuosa, que aos poucos invadia o ar.
Mas Ana só reparava nesses detalhes por serem persistentes. Fosse uma vez ou outra, nunca teria notado a risada um pouco desafinada da mulher no apartamento ao lado. Porque era Ana uma mulher discreta, mais preocupada com seus livros e seu jantar do que com os vizinhos.
Veio então uma sexta-feira sem risos. Chegou o sábado e veio só, sem fumaça de cigarro invadindo sacadas. E tudo que ficou no ar foi um blues triste. Mas Ana não ligou. Alugou filmes e dormiu.
Na segunda-feira, encontrou o vizinho no elevador, e não havia Silvia. Os tempos passaram e Silvia nunca mais apareceu. Ana, alheia a isso, pensava em mudar os móveis da sala.
Em uma segunda-feira, no elevador, Ana ajeitava o pingente da correntinha de ouro. Quando levantou o olhar, aconteceu pela segunda vez de seus olhares se cruzarem. O vizinho a olhava, mas não tinha a verdadeira intenção de olhar para o chão ou para a porta. Ele olhava para Ana. E neste momento, o segredo de Ana se revelou: era bela, dessas belezas que passam despercebidas nas primeiras vezes. Dessas belezas que se escondem nos panos e cabelos, mas que um vento mais forte ou um gesto mais leve podem nos mostrar.
Ana desceu do elevador e, durante seus passos seguintes, acompanhou-a um perfume bom e uns olhos castanhos. Depois, tudo sumiu da sua mente e ela voltou a pensar no trabalho e nos móveis.
Dois dias depois, enquanto esperava o elevador, ouviu alguém se aproximar. O perfume bom veio primeiro. Depois chegou a voz grave: “bom dia”. Ana sorriu e ajeitou os livros.
Seguiram-se dias e sorrisos. Bom-dias e palavras sobre o tempo, vai chover?, o condomínio e o jornal que o homem recebia na porta do apartamento. As palavras iniciais sempre partiam dele. De Ana, vinham os sorrisos.
Ana então mudou os móveis da sala. E mudou também o guarda-roupa. Aproveitou e mudou o cabelo. Numa noite de sexta-feira, bateram a sua porta. Era o vizinho, que agora, sabia Ana, chamava Pedro. E no sábado de manhã, quem entrasse no apartamento 73 e visse as roupas pelo chão, os lençóis bagunçados, o homem que dormia com as costas arranhadas e as taças de vinho manchadas com batom, mal poderia acreditar que a mulher dos cabelos negros e emaranhados era Ana. Toda Ana.
[Feliz dia dos namorados, Ana!]
Um comentário:
Parabéns pelo blog, pela forma que conduz as palavras, com cadência, num balanço que envolve o leitor, despertando a curiosidade e releva o prazer de ler cada letra sua.
Parabéns.
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